quarta-feira, 27 de julho de 2011

Antes de Começar

Entrei no corredor até a porta de ferro. Hilda, a secretária, a abriu com um clique eletrônico à distância. Eram três horas da tarde, pontual como um britânico. Sozinho na sala de espera, sons de máquinas agudas me diziam que o dentista ainda não acabara com o paciente das duas e meia. No teto, uma caixa de som embutida cantava músicas de elevador. Permaneci olhando a caixa oculta até ser chamado.

A consulta era mera rotina. Certificar-me que os dentes estavam em boas condições, como pareciam no espelho. Porém, a consulta não existira sem ela. Sem o momento de alegria rumo a estranhamento, de cinco dias atrás.

Era nossa primeira conversa íntima após muito tempo. Corpos que se aproximam cada vez mais, prestes a se colidir em um beijo. O que aconteceria naturalmente não fosse sua catastrófica halitose.

Meia hora depois dessa cena, sozinho na frente do espelho, fitava meu sorriso. Perguntava-me se haveria algo de errado com eles, algo oculto que, como ela, desse um mal hálito tão arrasador.

Cento e cinqüenta reais por um polimento e curetagem em placas de tártaro. “Não se preocupe, tudo está perfeito. Só encontrei problemas naturais onde a escovação é difícil, procedimento normal”. Um ponto para mim, zero para aquela garota.

Desde minha adolescência, Otávio é meu dentista. Seu profissionalismo e boa simpatia nunca fizeram-me procurar outro. Revê-lo sempre é uma boa experiência para conhecer novas histórias.

A clínica é a mesma há anos, salvos por demãos de tinta. Paredes de madeira antiga, sofás encostados na parede, a caixa de som no teto, do lado direito. Na parte esquerda da sala de espera, uma porta para um pequenino quintal a céu aberto.

Sempre fui intrigado por uma porta nesse quintal, menor que as demais, parecendo um pequeno quarto de brinquedo. Quando a consulta foi encerrada, lhe perguntei a respeito dos quartos. Era uma despensa quase vazia de caixas que precisavam ser jogadas fora.

A idéia de uma porta diferente chamou minha atenção. E num impulso perguntei se poderia ficar com a sala. Um aluguel barato pelo uso de uma sala desperdiçada. Um espaço para trabalhar.

Chegaria no horário que Hilda abrisse o consultório e iria embora no mesmo horário. Faria café, quando tivesse vontade, e não atrapalharia-o de maneira alguma. Usaria o espaço para escrever e, como uso um computador, não teria barulhos das letras da máquina de escrever.

Precavido, Otávio prometeu-me pensar. Mas eu sabia que aquela sala seria minha. Não haveria razão para não me acolher. Primeiro, pela amizade longa que tínhamos, mesmo profissional-paciente, e por um dinheiro extra que não faria mal a ninguém. Talvez a meu bolso.

Dias depois estava eu abaixando-me para entrar naquela porta, após retirar todas as tralhas que pareciam estar lá há anos. Sentei-me no chão visualizando como aproveitaria o espaço. Uma escrivaninha com cadeira no lado contrário da porta. Não precisava de mais.

Após a movimentação da mobília, de segunda a sexta feira eu me encontraria no quarto dos fundos da Clínica Orto Dental do centro sul da cidade, intentando escrever e trazer a tona a inspiração que eu acreditava possuir. Ter um novo espaço me parecia um bom começo, afinal.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

tri(ck)ste(r)

- Claro! Você acha que eu estaria aqui se não quisesse? Digo, olhe pra mim... eu não estaria aqui se não quisesse.

Ela deve estar certa. Sei lá. Se quisesse estar longe, estaria. Ela sabe que eu não iria atrás, de qualquer jeito. Talvez por isso tenha ficado já na primeira vez que pedi. Um convite despretensioso, confesso. Pensei que ela fosse embora...

- ... por causa disso. Claro! Sabe o que eu acho? Pois eu penso nisso todo dia e acho que...

Telefone toca. O do bar, não o meu: eu não tenho. Telefone toca e é pra mim. "Um segundo, meu amor, já volto aqui" e sigo lá para o balcão. Joana flerta comigo no caminho. Joshua pergunta "tá achando que esta merda é call center?". Na verdade não acho nada. Só estou achando estranho terem me encontrado aqui.

- Oye... oye!, amigo, soy Oscar. Sí, sí, estoy en Barcelona. Tengo una... lamentable... una noticia triste. Sí. Cálmate, te lo voy decirla... Es Marília. Ella... ella... se ha matado.

Vejo Joshua com o fone ao ouvido, falando em portunhol alguma coisa que eu não sei. Não sei. Tanto faz. Estou na mesa de novo, a menina me olha estranha e pergunta se tudo bem. "Tudo bem", respondo eu, "claro que tudo bem".

Por que não estaria?

segunda-feira, 18 de julho de 2011

diálogo em branco

- Você se acha muito esperto. O que eu mais lamento, sinceramente, é isso: você se achar tão esperto. Poderia ser um tesão de vida, se você fosse mais humilde. Ah!, poderia. Meu deus, olhe só, você nem se aguenta em pé. Bêbado. Desgraçado. Estragou a minha vida inteira naquela igreja, pai do céu, por que não ouvi minha mãe? Ei! Odair! Volte aqui agora, Odair. Onde você está indo? ODAIR!

Eu, sentado a um canto, bebia meu outro whisky brindando a Odair.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Homem No Escuro

Fecho meus olhos e estou no clube. A dor cessa por uns instantes e música nasce nos ouvidos. Um homem toca um violão surrado, com barba por fazer e voz arranhada. Se não fosse um blues, sua voz estragaria tudo.

Passeio pelas mesas escolhendo qual delas vou prestar atenção hoje. Pedir uma bebida leve e observar cada mesa. É o que faço a maioria do tempo, observar as pessoas e escrever. Sou um escritor com pouca criatividade, preciso da realidade para tecer minhas fantasias.

Abro os olhos, a casa inerte. Fecho, e a bebida gelada escorre do copo. Meu cansaço não permite que encontre ninguém interessante. Ana está bêbada, como sempre. E não quero fode-la em pensamentos, bastou-me uma vez real. Meus amigos parecem felizes em seu canto, diferentemente de mim.

A noite está mais vazia por dentro do que fora. De olhos abertos, vendo as marcas podres do quarto, ao menos escuto um silêncio que me conforta mais. Meia hora dentro do pub, o velho do folk foi embora, dando espaço para um gordinho cheio de fazer falsetes. Decido ir embora.

Acabo a noite na frente de casa, acariciando um felino com um machucado no rosto. Seu miado são cordas desafinadas de violão. Caminhando para lá e para cá, nas minhas pernas, parece em sintonia comigo. Ficamos os dois lendo o silêncio.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

blues

Arthur e Beto pousaram os copos na mesa ao mesmo tempo, com um pequeno estalo. Sincronizados. Engraçado que nem era de propósito, mas aconteceu. Só Arthur percebeu, de todo modo, porque Beto olhava para a moça que lia uma poesia.

Era noite de leitura, no Clube. Noite de leitura costumava significar, desde o começo, noite chata. Noite em que não liam nada que prestasse, noite de textos próprios sem qualquer teor poético, qualidade zero. Beto e Arthur iam ao Clube de vez em quando e de vez em quando calhava de ser a noite de poesia.

O poema que a moça lia não era bom, mas ela sim. Arthur ainda olhava o copo pensando sobre o estalo quando Beto só exclamou:

- Ruim, texto ruim, mas puta mina boa, olha só. Lê bem demais, a garota.

- LÊ bem, é? É boa por ler bem? Sei.

E Arthur encheu novamente o copo, enquanto Beto olhava o corpo levantando da cadeira sob palmas efusivas. “É”, pensou, “texto ruim e má platéia”.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Ana

O cigarro me incomodava em Ana. A maneira obsessiva com que sorvia pedaços e pedaços de palitos de tabaco. O jeito de ressaltar o quanto gostava de trepar dando baforadas, sem se importar se custaria meu prazer ou seu pulmão.

Não é apelo moral aos bons costumes, foi minha mãe. Vivi a infância com o corpo fedendo a cigarro enquanto meus coleguinhas eram asseados a talco. Quando pude sair de casa, alugar um apartamento vagabundo que cheirava a mofo, mas ao menos livre da fumaça, eu já era conhecido por alguns amigos como O Esfumaçado.

A semi rigidez na cama se explica. Ela na posição preferida de Larry Flint enquanto rodas e rodas de fumaça saiam da boca. Ana, a locomotiva. Uma mulher que mal me compreendia, estendida em minha cama por ser aquilo que aparência nenhuma engana, dada com os homens.

Devo eu defender-me em uma filosofia para dizer que sou superior a isso. Há um tempo em que qualquer ser humano não tem nada a perder e, embora meu pai não tenha me ensinado isso, foi a lição mais sincera que recebi dele quando partiu de casa. Não para comprar cigarros, diga-se.

Não tenho recursos extravagantes na sedução feminina. Uma vez ou outra uma cai nas piadas patéticas e era essa a questão. Ana deveria perdoar minha verborragia e eu, supostamente, seus cigarros. Mas eu não pude me conter.

Parei de lhe pagar as contas, sabendo que ela fazia isso só pela birita, evitei as caronas e simulei não estar em casa no sábado passado. Poderia soar egoísta, eu não me importava.

Eu era um homem de princípios. Mas, aos vinte e sete anos, eu já estava pelos meios de qualquer tolerância.

Duas horas da manhã, o Clube está fechado, sem nenhum motivo aparente. Dou a volta, vejo a porta de serviço entreaberta e atravesso a escuridão. Joshua, o brasileiro mais brasileiro com nome de ingês, está arrumando o pardieiro.

“O que houve, aqui, homem?”, perguntei.

“Briga, fechei mais cedo. Eu tolero tudo, menos que quebrem meu pedaço com arruaça”.

“Tem lá sua razão. Hoje eu vim para beber, contigo pelo visto”

“Pegue o que quiser de dentro do balcão, por conta da casa”. Me lembrei de Ana, amiga por conveniência, senti-me mal. “A próxima rodada é minha, então”.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

trickster II

- Os olhos vermelhos são de frio, seu guarda. São de frio. Sim senhor, seu guarda, vermelho de frio, estou dizendo. É, e por andar de bicicleta. Sim senhor, desculpe incomodar. Claro, entendo, é seu trabalho. Claro. Boa noite.

Outro gole. Whisky, hoje. On the rocks que essa vida é rock and roll.

- Depois de 30 anos tomar geral feito um moleque. Merda. Policial da porra, filhodaputa. E na porta do bar. Vai ver é o frio, esse gorro idiota que me faz parecer marginal. Vocês bem sabem, esse papo de marginal é mainstream demais pro meu gosto.

Outro gole e levanto a mão pra outro copo. Ela me olha lá do fundo e já vem com a garrafa em mãos. Adoro essa moça.

- Ora, claro que ele acreditou. Tá frio mesmo lá pra fora, cara, tu não sabe? Como não sabe? Tás aqui desde as quatro horas? Mas que puta vagabundo...

Boto os pés sobre a mesa. Qualquer um é qualquer um, hoje em dia.