sexta-feira, 29 de março de 2013

O Garoto que Falava com Pontes


Era uma vez - pois só assim tal história poderia começar - um garoto que falava com pontes. Ele era um garoto normal, como esses que você encontra na rua enquanto vai para a escola, com os cabelos despenteados e uma expressão de puro sono no rosto; a diferença era justamente sua habilidade de se comunicar com pontes. Uma diferença importante, diriam alguns.
Não conseguia, curiosamente, dialogar com casas, prédios, muros ou postes: falava com pontes e pontes apenas.
“Olá”, disse ele, parado diante de uma enorme ponte vermelha.
“Olá garoto”, a ponte respondeu, surpresa por estar consciente da própria voz. “Atravessar-me-á hoje?”, ela perguntava com a mesóclise.
“Sim, se não for muito incômodo”, ele respondeu, sem ao menos procurar usar uma simples ênclise.
“Não será incômodo algum, pequeno, afinal é para isso que estou aqui. Para onde você vai, se me permite inquisitar.”
“Visitar minha avó, minha mãe disse que precisamos vê-la algumas vezes por ano, pelo menos. Elas brigam muito, mas acho que precisamos fazer o que precisamos fazer.”
A ponte permaneceu no lugar, balançando as antigas armações de concreto de forma quase imperceptível. “Sim, você deve fazê-lo. É importante manter ligações com as outras pessoas. Sua mãe pode ter problemas com a mãe dela… mas, bem, ainda assim, são famílias. Duzentos anos fixada neste lugar e é duas coisas eu aprendi de mais seguro: laços de família devem ser reforçados sempre, primeiro. E, mais importante, vocês humanos cruzam uma ponte quando chegam nela.”
Depois que o carro voltou a funcionar o garoto seguiu viagem, conversando com a ponte por todo o tempo que permaneceu nela. Gostava daquela ponte, ela era monumental, com os cabos de aço recém pintados em um vermelho chamativo, antiga e sábia. Usava sinônimos com pontes em demasia, era bem verdade, e cansava um pouco com suas analogias de cruzar caminhos e chegar de um ponto para outro, mas foi uma conversa agradável, ao contrário da visita no asilo. Cada ponte tinha uma voz diferente. As pontes maiores tinham vozes grossas e imponentes, algumas eram masculinas e teimosas, outras demonstravam agressiva arrogância por seu tamanho e importante existência para o comércio local. Às pontes mais arrogantes, ele nada dizia, ignorando seus gritos egocêntricos que morriam no nada. Havia pontes de madeira, com uma voz forte e batida, cujas palavras saíam rápidas e atropeladas, em uma cadência difícil de entender; as pontes de pedra tinham um falar pesado e praticamente jogavam palavras em latim, narrando sobre a época dos grandiosos romanos que a criaram.
Algumas dessas pontes - principalmente as de pedra - tinham um profundo conhecimento de história local, enquanto outras começavam a questionar porque existiam e quanto tempo mais ficariam no mesmo lugar, servindo apenas de passagem para as pessoas, cansadas dos rios e vales que passavam por baixo de suas grades de metal. Outras gostavam de liderar a conversa de assunto para assunto, aproveitando cada ponte que surgia na conversa.
Até o dia em que ele corria pela rua em que morava, procurando por um lugar para se esconder enquanto um dos colegas gritava em contagem regressiva. O sol parecia eternamente fixado no céu e as longas horas que tinham pela frente eram promissoras. Correu ate o fim da rua e se jogou atrás de um arbusto que dava entrada para o parque do bairro. “Psiu, ei!” Sentiu as costas arquearem com o susto. “Ah! Eu ouvi isso, eu sei que você pode me entender.” Olhou para trás e viu uma construção de madeira, pouco mais que algumas tábuas presas umas às outras com pregos enferrujados e um parapeito de um dos lados. Estreita e curta, a ponte servia de passagem para uma falha no terreno do parque, cobrindo um buraco profundo e escuro que se prolongava por algumas centenas de metros. “Garoto, tire esse olhar estúpido da cara e ande até aqui”, era a primeira vez que encontrava aquela ponte e olhava desconfiado para ela.
“Eu… eu não posso, estou me escondendo,” respondeu antes de se virar para a rua, permanecendo agachado em seu esconderijo.
“Não seja bobo. Eu tenho um segredo para contar. Mas preciso que você venha até aqui, nunca se sabe quem mais estará ouvindo.”
O garoto vacilou por um momento, mas levantou-se e andou lentamente até a ponte. “Conte-me,” disse de forma ríspida - desta vez com uma ênclise.
“Olhe lá, para onde levo.” Ele olhou, parecia apenas um morro simples, com uma trilha apagada pelo tempo. “Siga essa trilha e você encontrará o lugar mais misterioso que existe, eu juro.”
A trilha desaparecia em uma curva fechada, cercada por árvores e arbustos baixos. Parecia-lhe uma trilha comum, que levava para o estacionamento ou para a área de recreação e nunca o caminho para o lugar mais misterioso da Terra.
“Estou brincando com meus amigos… não posso ir para outro lugar, eles ficarão preocupados.”
“Não diga besteiras! Você vai até lá, da uma espiadinha e volta, bem rápido. Quase nunca alguém passa por aqui… e uma ponte só pode ser feliz se ela serve como caminho, garoto. E, pelos deuses, que caminho eu levo! Escute só, vá até lá. Uma olhada rápida e pronto. O máximo que vai acontecer é que eles vão te chamar de mestre do esconde-esconde. Imagine, mestre do esconde-esconde! E depois você poderá impressionar todos seus amigos contando o que viu por lá.”
Era um título de honra, ele pensou. Mestre do disfarce e da camuflagem! E poder se gabar por ter visto algo que nenhum deles jamais vira… Mal podia conter a curiosidade que crescia em seu âmago, girando e gritando como uma sirene. Mas a ponte parecia tão frágil…
“Você não vai dar uma de escorpião para cima de mim, não é?”
“Escorpião? Você não diz coisa com coisa, moleque,” a ponte respondeu com um tom de impaciência.
“É, escorpião, como na fábula do escorpião que precisava atravessar o rio. Ele andou por dias, procurando por passagem, mas não encontrou ponte ou tronco caido que o ajudasse a chegar até a outra margem. Encontrou apenas um sapo. ‘Ajude-me, sapo’, pediu o escorpião, ‘pois preciso atravessar o rio e só você pode me levar.’ ‘Não, pois você é um escorpião e no meio do caminho me envenenará,’ recusou o sapo, que bem conhecia a natureza do escorpião. ‘Por que faria tal atrocidade? Eu morreria com você, sapo.’ O sapo, depois de muito refletir, enfim concordou com o escorpião, mas antes o fez prometer que não o atacaria no meio do caminho. Quando chegaram no meio do rio, o sapo nadando com dificuldade para se manter acima da água enquanto equilibrava o escorpião em seu corpo, sentiu uma forte ferroada nas costa e percebeu que veneno corria pelos seus órgãos. ‘Não! Você acabou de nos matar, escorpião estúpido! Por que fez isso?’ O escorpião olhou com sinceridade para o sapo e respondeu: ‘Ora, sou um escorpião, o que mais faria?’ Fim.” O garoto recitou a fábula de forma apressada, sem fazer pausa entre as frases. “Você não vai dar uma de escorpião, não é?” Podia escutar os outros garotos rindo e correndo.
A ponte permaneceu em silêncio e rangeu uma das tábuas. “Claro que não! Eu sirvo como ponte e não como armadilha. Eu senti que você podia me escutar e queria que pudesse ir até o fim da trilha, pois é de fato o lugar mais misterioso desse mundo.”
Ele colocou um dedo no queixo e contemplou a trilha apertada. “Tudo bem, eu vou.”
“Ótimo! Ande logo! Ande logo!”
O garoto que falava com pontes pisou na velha ponte de madeira. Deu um passo e ela tremeu inteira, derrubando pó no buraco profundo que permanecia abaixo - uma boca faminta que que engolia sem piedade os tolos que brincavam com a sorte. O garoto deu outro passo e a ponte gemeu ainda mais.
Deu outro passo, pensando na fábula do sapo e do escorpião.
E outro…
E outro…
E nada mais.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Poema


A inspiração vem de onde?
Vem da tristeza alegria, do canto da cotovia
Vem do luar do sertão, vem de uma noite fria
vem, olha só quem diria, vem pelo raio e trovão
o beijo dessa paixão.
a inspiração vem de onde?

Transpiração 
de Alzira Espíndola 
e Itamar Assumpção


Obra prima, disse o poeta ao finalizar o poema, minha volta definitiva à inspiração, mesmo que ninguém soubesse de onde vinha. Eram versos sobre uma musa distante que lhe surgiu, como uma linda música clássica, afirmou. Mostrou aos amigos e leitores, leu em voz alta em praça pública, entregou uma cópia a todos e fez uma especialmente para a musa.


O amigo e poeta Abílio Gonçalves, amigo íntimo do escritor recém guarnecido da benção celeste, tomou conhecimento da nova poesia dois dias depois da escrita. Perdendo o episódio da leitura na praça por estar em viagem. Quando retornou a cidade, um bilhete chamava Abílio a casa do poeta, fiz minha obra prima, venha assim que possível.

O dia se fazia tarde mas atendeu a solicitação e foi à casa com a costumeira empolgação. Ao abrir-lhe a porta, o poeta retirou imediatamente a poesia do bolso ao mesmo tempo que convidava-o para a sala de visitas, para a leitura ficar mais apetitosa.

Quando o último verso foi entoado, Abílio possuía um manancial de expressões faciais, menos aquela esperada. Sentia os olhos do poeta arder de expectativa sobre os seus, ansiando uma frase que o levasse ao Olimpo. Pediu-lhe uma segunda leitura, alegando que a grandiosidade do poema em relação a sua percepção diminuta deixou prováveis minúcias perdidas.

Mas não, nada. Aos olhos do amigo, não havia nada naquela poesia que não soasse repetição. Ele poderia citar um ou dois autores que se consagraram com o mesmo estilo poético e maior apuro. A linguagem, a forma, o tema de louvar a musa, nada daquilo soou em seus ouvidos como um espetáculo único, como via seu autor.

Se mentisse e aclamasse-o como gênio, Abílio seria contrário de sua própria fé de não dar esperanças a poemas medíciores. Se prosseguisse com uma opinião verdadeira, ofenderia o amigo com poucas palavras. Intimamente pensou em lhe dizer que se isso era uma obra prima, melhor deixar a poesia para os empregados, mas apenas sorriu.

Em posse do poema, dobrou a folha novamente para coloca-la no bolso e se levantou sem dizer nenhuma palavra. Pensou que talvez no silêncio encontraria um elogio fictício que fosse útil sem trair seus conceitos. Foi o que fez mencionando uma analogia entre a moça e a natureza. O poeta sorriu e lhe abraçou, feliz. Sentia-se consagrado.

Duas horas depois de sair, Abílio entrava em sua residência. Foi ao escritório procurando a pasta com seus próprios textos e os leu de novo. Temia que estivesse tão cego quanto o amigo. Mas com o passar das leituras, caiu em leve ataque de egocentrísmo e, saciado, foi ao quarto dormir.

Na cama, as palavras ainda recentes do poeta permaneciam em sua cabeça. Francamente, pensava, comparar os gestos da musa com as ondas do mar, francamente. E teve um ataque de riso ao lembrar da metáfora de passos com compassos de uma melodia e dos movimentos gestuais que o poeta fazia ao recitá-lo, subindo e descendo das cadeiras a cada entonação.

15 de Novembro de 2005

(editado em) 27 de Março de 2013

sexta-feira, 22 de março de 2013

As Brumas do Farol 7 - Dentro da Bruma (II)


Seus olhos podiam ver pouco, preso do jeito que estava, dentro do nevoeiro. Havia algo de sobrenatural na névoa, como se ela estivesse viva. A bruma que o cercava era grossa, quase palpável e Robert sentia que de alguma forma, ela o espreitava, esperando por alguma brecha em sua posição de defesa. O samurai andava com a katana em punhos, realizando pequenos passos diagonais pela ponte, retesando os músculos prontos para uma manobra de defesa e contra-ataque. Tal base exigia um enorme gasto constante de energia, mas ele não conseguiria relaxar enquanto estivesse dentro da Bruma. Perguntou-se onde estavam todos os outros - principalmente seu irmão, o Corvo - e girou o corpo para olhar para trás, apontando a espada para aquela direção. Nada. Nada além da cortina cinza que caía sobre seus olhos. Olhava, imaginou, pelos olhos de um velho cuja visão se deteriorava com a idade avançada. Cortou com raiva o ar, abrindo por um milésimo de segundo uma brecha na névoa, nada além de uma minúscula vitória. A Bruma reagiu e Robert teve a impressão de que enxergava ainda menos. Eu posso sentí-la pulsar, maldição. Essa… coisa, está viva. Decidiu que devia agir com máxima cautela e firmou a empunhadura de sua arma, formando uma tensão que podia ser sentida por toda a ponte.
Quando girou o corpo para a direção que seguia originalmente, viu uma sombra distinguindo-se e, sua área de alcance, demasiadamente perto para ele nunca ter sentido sua aproximação. Pelo primeiro golpe de vista, julgou ser um homem sentado com as pernas cruzadas e com duas espadas amarradas na cintura. Ele era magro e tinha o cabelo em um pequeno coque no topo da cabeça. Seus dedos firmaram um aperto na empunhadura de sua própria katana e Robert ergueu os braços, pronto para realizar um corte vertical.
“Sente-se, garoto.” Robert sentiu o tom imperativo do homem - aquela voz não abria espaço para hesitação ou fúria, existindo nela apenas a mais plena calma daquele que melhor analisava o momento que se passava. Sem indecisões, sem pânico. “Venha ver isso, é interessante, eu lhe asseguro.”
Robert caminhou dois passos curtos, mãos tão firmes que não denunciavam o nervosismo que sentia. Nervosismo e medo. Medo crescente à cada respiração minha. “Onde eles estão? Meus companheiros, diga onde eles estão ou fique preparado para encontrar seu criador!” O samurai gritou com todo seu fôlego.
“Você diz o corvo, o portal e a criança? Não sei onde eles estão, samurai. Estou aqui na Bruma por você e outros estão cuidado deles. Agora, venha aqui e veja isso.” Ele estendeu uma das mãos para Robert, mostrando a sombra de uma flor.
Ele sabe quem somos. Mas como? Quem é ele? Sentou-se perto do homem, enxergando apenas seu contorno e alguns detalhes do kimono que o estranho usava. A sombra colocou a flor na boca e realizou um rápido golpe com a mão direita, esticando a mão aberta próxima ao rosto de Robert. Como mágica, a névoa foi expulsa de onde estava - concentrado-se no centro da palma do homem alguns momentos antes de ser expelida para longe deles. Para o garoto, era como se estivessem dentro de um cúpula onde a Bruma não podia tocá-los e pela primeira vez ele o viu. O homem era feio, o nariz largo e torto, os olhos esbugalhados pareciam que iam cair do rosto duro a qualquer instante e uma barba rala poluía o maxilar; pela sujeira colada na pele, Robert acreditava que ele não tomava banho há meses. Percebeu, no entanto, uma aura ao redor do samurai sentado a sua frente, os joelhos quase tocando os seus. O kimono estava impecavelmente branco e poucas rugas marcavam o tecido; as espadas estavam bem cuidadas e, ele sabia por instinto, afiadas em um grau impossível. Bem, talvez essa lâmina possa cortar a Bruma de verdade. “Samurai…,” saboreou a palavra, regozijando cada sílaba, “foi essa a palavra que você me disse. É isso que sou? Um samurai?”
O homem sorriu com dentes brancos e perfeitamente alinhados, exógenos àquele rosto feio. “O caminho da dura justiça e da lealdade cega está presente em você, sim. Samurai.”
“Mas… como? Eu nunca tive permissão de encostar em uma faca afiada…”
“Esqueça o que você era, Samurai. O que importa é o agora. E agora você está na Bruma.”
“Qual… qual o seu nome?”
“Ah,” ele exasperou, “nomes não foram nomeados para serem entregues assim, jovem samurai. Não onde estamos, não com o tempo que nos foi dado.” O sorriso que ele ainda exibia nos lábio inchados morreu e um brilho sombrio tomou conta de seus olhos. “Agora escute com atenção, pois o que tenho para te mostrar será a diferença entre o sucesso e a derrota. Muito está em jogo, Samurai, coisas piores do que a morte podem acontecer caso vocês não consigam recuperar o Fogo. Escute com atenção, mas primeiro veja essa obra de arte. Olhe com atenção.” Ele entregou uma orquídea para Robert. “Olhe-a como um samurai.”
O garoto encarou o homem por mais alguns segundos, confuso com aquele tipo de pedido, e baixou os olhos para a orquídea. Não era uma planta perigosa - diferente das flores que haviam encontrado no Bosque - mas uma planta comum, branca. Estudou a flor durante quase cinco minutos, tentando decidir o porquê classificá-la como obra de arte. Olhe como um samurai. Seus olhos então se abriram quando a surpresa o atingiu em cheio. “É uma planta bonita,” disse com convicção, “mas o corte oculta qualquer beleza.” O homem sorriu, satisfeito com a resposta do jovem. Robert estudou de perto, assombrado, o corte limpo, perfeito, feito no caule da flor. A ele, parecia possível simplesmente encostar as duas partes da planta para que ela voltasse a ser um corpo unido, tamanha perfeição do corte que fora realizado. “Impressionante”, disse mais para si do que para o outro samurai.
“Nunca havia segurado uma lâmina afiada, você me disse. Por isso estou aqui, no meio desse monstro, para mostrar o que e um corte. O verdadeiro corte não está na katana empunhada, mas na mente daquele que a segura, Samurai. Cortar com a lâmina, é golpear como um cego contra o inimigo. Qualquer um pode golpear com raiva e cortar a carne com uma lâmina bem temperada, Robert, mas apenas os samurais golpeiam com a mente. O que importa é o momento e nada mais. Não existe futuro, não existe passado. Há apenas o agora e você viverá e morrerá por ele… pelo instante. Como em uma pintura, cada golpe de sua mão deverá ser permanente, certeiro e livre de indecisões. Sua katana deverá cortar onde você quer e quando quiser, jovem. O melhor espadachim cairá diante do mais lento dos homens se falhar em dado instante. Viva para o agora e para ele apenas e viverá até o final de sua busca, Samurai. Pinte seu quadro livre de erros, uma pincelada depois da outra. Você entendeu?” Sem desgrudar os olhos do homem, Robert afirmou com a cabeça. “Ótimo. Lembre-se: cada duelo que se inicia é um quadro em branco. Cabe ao seu traçado completá-lo sem falhas, pois apenas assim ele poderá ser terminado, sem erros. Continue seu caminho, jovem. Volte para os seus e viva pelo momento. Muito depende de vocês.”
Levantando-se rapidamente, ele cruzou o olhar mais uma vez com o samurai sentado e sentiu a bondade que havia em sua alma. Os outros estão assegurados por pessoas como ele. O coração de Robert aquietou e ele caminhou, espada embainhada. Assim ela permaneceria assim até o momento em que deveria ser usada. Não antes e nunca depois, decidiu.
O samurai desapareceu na Bruma.

Jimmy flutuou para frente, consciente da ausência dos três amigos. Seus pés estavam em chamas, enquanto o sol poente pintava o peito e cabeça do garoto. O contorno que formava seu perfil seguiu adiante, em constante mutação interior. Conseguia ver melhor do que seus amigos, presos aos olhos físicos durante o forte nevoeiro. Olhos físicos têm a mania besta de se deixarem confundir com o ambiente, ele pensou em certo momento. O que cegava seu caminho era pior do que as adversidades dos outros garotos, no entanto. A névoa de Jimmy era interna. Ele não conseguia manter a mente coesa e qualquer pensamento, por mais simples que fosse, exigia hercúlea concentração e esforços. Tentava decidir o que fazer, mas a névoa mental era dura como o ferro e refletir era impossível.
Pensou em globos oculares, depois em dragões, corvos, borboletas e formigas. Tubarões tomaram sua mente e deram espaço para os diferentes modelos de sistema solar de Aristóteles, Copérnico e Kepler. A rápida sucessão de pensamentos fragmentados e aleatórios deram continuidade enquanto a confusão se instalava, confortável e sem pressa, em sua cabeça privada de rosto. Sem ter a capacidade de raciocínio, o garoto-sonho vagou pela ponte sem destino certo.
Uma voz, originada onde seria o umbigo de Jimmy, penetrou nas brumas mentais e alcançou o garoto como um soco no nariz. “Jimmy! Jimmy! Consegue me escutar, Jimmy?”
“Eu… eu não sei. Não consigo decidir se escuto ou não. Acho… acho que sim, estou pensando nisso, afinal. Ou essa é a minha voz?”
“Jimmy!”, cada palavra machucava, “Me escute com atenção Jimmy. Eu me perdi na Bruma e não conseguiria chegar onde deveríamos nos encontrar, por isso estou sonhando. Há mais alguém aqui dentro, Jimmy. Uma presença antiga e perigosa está planejando seu declínio. Derrote-a quando for a hora, ela não estava nos planos, Jimmy.” O nariz de Jimmy - perdido em algum lugar entre os dois lados da entrada do Bosque - sangrava em torrentes. A voz cortava fundo, mas era necessário, ele teria de suportar o custo. O contrário era por demais terrível para ser seriamente cogitado.
“Estou machucado.” Jimmy não sabia como sabia. “Se você continuar, vou morrer.”
“Serei breve. É necessário. Eu deveria encontrá-lo na ponte, você seria como uma chama… um farol, no meio da Bruma, mas sua mente… está bloqueada pela outra prese-”
“Um Dragão,” interrompeu, “eu o prendi depois de roubar a ponte. Ele ganhou meu nome. A trapaça foi justificada,” mentiu para si mesmo.
“Você tem de superar o Dragão, Jimmy. Seu corpo, garoto, é um portal para as Terras Distantes, um local onde todos os sonhos existem ao mesmo tempo. Como já descobriu, muitos têm a habilidade de cruzar objetos e pessoas entre os sonhos. É assim que vocês vão conseguir o Guia para atravessar as Brumas e chegar no Farol. Ache o Guia nas Terras Distantes, Jimmy, e assim você poderá levá-lo para o Bosque. Siga Jimmy. Siga em segurança.”
A voz cessou e, com ele, a névoa que interrompia os pensamentos do garoto-sonho morreu. Jimmy podia pensar com ímpar agudeza. Ele era um portal para as Terras Distantes, o que explicava muito do que sentia que podia fazer. Era seu papel encontrar o Guia, mas não sabia quem era ou como trazê-lo. Tentou, em vão, encontrar a voz novamente, mas acreditava que só podia pensar porque o dono daquela voz estava distraindo o Dragão.

Jimmy vagou sempre em frente e lentamente cruzou a ponte. No fim da travessia, viu as Paul, John e Robert ganharem contraste e texturas. Estavam uma vez mais reunidos. Cada um deles, Jimmy percebera, estava diferente, de alguma forma mais sérios e conscientes da própria natureza. Não eram mais garotos perdidos em um bosque surreal. Eles eram um grupo com um objetivo e iriam chegar ao ponto final, ainda que este fosse uma incógnita.
Havia um olhar profundo em Paul, um poço de onde sentia que poderia beber do mais vasto conhecimento; a postura de Robert era perfeita e ele via que o samurai tinha total controle do que acontecia ao seu redor. Mas os pequenos olhos amarelos do Corvo… havia duvida no pássaro. E talvez traição. Jimmy não tinha certeza. Algo estava errado com John, mas sabia que seria inútil perguntar. O que fora dito no encontro dele, era para ele apenas. Não tinha outra escolha a não ser confiar no pequeno pássaro negro. Não podia se deixar distrair com os problemas dos outros.
Afinal, tinha seus próprios desafios.
E não tinha a menor idéia de como enfrentá-los.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Histórias de Sarjeta

Ana, a locomotiva

Nunca bati em uma mulher. Exceto Ana. Duas vezes. Ela possuía a - péssima - mania de tomar pico. Na primeira vez que vi ela no chão, rindo abobalhada, achei que era uma overdose. Lhe dei um tapa para que tentasse articular alguma palavra. Na segunda vez, outro tapa, mas era mesmo overdose. O braço começou a ficar inchado e tive de levá-la ao hospital.

Dias depois, fui visitá-la. Olheiras no rosto, uma faixa no braço, morfina - ou algo que ela me disse ser morfina - na veia. "Trouxe cigarros?", me perguntou. "Sua idiota, você quase morreu", pensei, mas respondi apenas não.

Havia um rapaz com Ana no quarto. Tomavam pico juntos, não no quarto, na vida, esclarecendo. Nunca me senti tão incomodado em uma situação. Ela e ele, como se feitos um para o outro. Ana gostava de mim. Eu gostava de Ana. Mas ela era demais. Com Ana, eu precisava ser selvagem, chutar animais e latas pela rua.

Mas sou só um escritor.


Sujinha

Estávamos no terceiro encontro e só tínhamos dinheiro para a condução. O atraso do ônibus e uma chuva torrencial que surgiu me fez convidá-la para minha casa. Após uma toalha para se secar, ela pediu para tomar um banho quente, "não quero ficar resfriada por causa da chuva". Não encontrei maneira de dizer não.

Quinze minutos depois, saiu com um short e uma de minhas camisetas, roupas quase sujas, espalhadas por lá. Fui ao banheiro urinar. Então, eu vi. Era como as três caravelas de Cabral, uma ao lado da outra, boiando no vaso, em destaque.

Voltei à sala. "Vamos beber", me disse. "Não bebo", respondi. "Como você é careta", falou. "Pois é", respondi novamente.

E seu corpo semi nu cobrindo-me enquanto desabotoava seu sutiã não foi o suficiente para retirar aquela imagem de minha cabeça. Eram três, as caravelas de Cabral, boiavam no mar de Portugal.

A Rainha 

Dez anos após a formatura, Carolina não era mais a beleza que guardei na memória platônica. Talvez fora esse o motivo que a fez sair comigo.

Estive naquele restaurante - que custou, aproximadamente, cinco de minhas refeições normais - pela nostalgia e a vontade sexual de, sob os lençóis, reconhecer que mesmo tardiamente a rainha do baile de formatura estava em minha cama.

Mas ela estava feia de dar dó.


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Nota do autor: A personagem do primeiro conto, Ana, estreou em uma narrativa com seu nome que pode ser lida também no clube.

segunda-feira, 18 de março de 2013

bom é quente

Não tenho amigo entre homens, não tenho amigo entre cães. Por que esse viralata me seguiu como se eu fosse osso, seu dono? Não sou, nunca fui, não vou ser. Passa, disse, passa. Sai daqui. Vai, sai, pra lá, passa. Chatice de cão mais chato, esse. E eu pensando, pensando no que faria um cachorro correr feito louco atrás de meus pés, sem que eu nunca o tivesse visto. Que é isso? Pareço um poste? Pareço? Talvez isso, sim, talvez eu pareça poste e aquele pulguento queria mijar na minha perna, na calça amassada que ontem tirei da gaveta. Cachorro seguindo, diacho, ainda bem que aqui não entrou, ainda bem. E esse pensamento que segue seguindo o tempo todo? Que é isso, então? Minha cabeça gira gira, cansa, esbaforido o pensamento. Essa mente é um cachorro rodando atrás de seu próprio rabo. Se fosse pra acreditar em karma, diria que eu era um cachorro na outra vida, mas acho que não faria sentido. Acho que vou ser um cachorro na próxima, pra pagar o pecado de ter escorraçado tanto cão sem dono a vida inteira. Bicho chato, chato, pulando, babando, pedindo comida e a gente humano achando que é afeto. Que ele quer carinho. Ele quer é teto. A gente também quer, não quer? Teto. E uma cerveja, no momento, uma cerveja cai bem, enquanto o teto mantém-se em pé.

sexta-feira, 15 de março de 2013

As Brumas do Farol 6 - Dentro da Bruma (I)


Os passos ecoaram pela ponte. Uma pessoa distante julgaria erroneamente que apenas dois pares de pés cruzavam a ponte. A sandália de madeira de Robert batia sonoramente, enquanto o passo arrastado de Paul se espalhava, cansado, sobre o metal que usavam para atravessar o largo rio que corria violentamente abaixo deles. Olhava para trás, o garoto gordo, de tempo em tempo, certificando-se de que a ponte não estava caindo ou que alguma criatura os tivesse seguindo. Sua mente passava desesperadamente por cenários onde eles se viam cercados por monstros terríveis em ambos fins da ponte, exatamente como pequenas moscas presas na teia de aranhas famintas. A única saída seria pular na correnteza forte do rio e esperar sobreviver de alguma forma. Paul sequer conseguia flutuar em piscinas. Robert é uma aberração de samurai, rápido e perigoso; o Corvo já mostrou que pode bicar com ferocidade, enquanto Jimmy… somente os deuses podem dizer o que ele é capaz de fazer, ele pensava enquanto caminhava. Algumas vezes olhava para o contorno onírico, tentando imaginar porque seus passos não produziam sons e, por duas vezes, vira que Jimmy andava alguns centímetros acima da superfície da ponte. Eu sirvo apenas para atrasar o grupo, um garoto normal e fora de forma. Merda. Corou levemente apenas por pensar no xingamento. O que sua mãe diria, vendo-o agora, suado e sujo, o uniforme rasgado, pensando em palavrões e entrando em lugares estranhos? O cérebro de Paul começou a trabalhar febrilmente, tentando absorver todos os aspectos da realidade em que se encontrava.
Olhou para trás mais uma vez e viu a pedra, quase do tamanho da maçã que o velho comia anteriormente à sombra da árvore que se perdia no horizonte. Quando olhou para frente, viu que a Bruma se aproximava rapidamente. “Não seria melhor se parássemos por um tempo? Esperar… esperar aquele sol vermelho aparecer e dissipar essa névoa. Pessoal, é sério, eu não gosto do aspecto dessa… coisa.” Era estranho ver a névoa que avançava sobre eles, ignorando o rio e passando apenas sobre a ponte. Para Paul, a névoa evitava as águas e esperava apenas uma oportunidade para chegar à outra margem. A Bruma avançava pela ponte e em nenhum outro lugar.
“Paul tem razão,” respondeu o samurai, rangendo os dentes para a Bruma. “Ela parece respirar, parece um ser vivo.”
Do alto, John podia vê-los caminhando lentamente, hesitantes. Ele bateu as asas para ganhar velocidade e iniciar uma rápida descida até os três companheiro e escutar o que estavam decidindo. As vozes chegavam fracas onde estava. Iria pousar nos ombros de Paul e escutar cada palavra até conseguir montar um plano em sua cabeça pequena. No fim, são meus planos que funcionam, mentiu para si. Pouco antes de realizar a primeira curva, no entanto, o pássaro foi engolido pela Bruma. Quando voltou os olhos para baixo, viu apenas o manto cinza que caía sobre o mundo e a sombra da ponte. Nenhum sinal dos outros, no entanto. O Corvo pousou sobre o metal e olhou, no ângulo torto dos pássaros, por todas as direções. Para onde teriam ido? Estavam ali um segundo atrás e agora sumiram, desapareceram sem deixar sinais. Ou eu que desapareci?
O pássaro caminhou alguns metros, produzindo rápidos baques na ponte, tentando encontrar qualquer sinal de que eles estavam por perto, mas viu apenas sombras dos limites da ponte e a Bruma. Há algo de maligno nessa névoa estranha. Ele se apressou, lembrando de todos os presságios que tiveram de que a Bruma não era um bom lugar para se estar. Ainda sentia arrepios por ter estado dentro de Jimmy e havia ainda aquela névoa cinzenta limitando sua visão. De repente, um barulho. Ouviu um leve som no metal, como pingos de água contra o ferro frio. Tick-tick-tick-tick, rápido e súbito.
John continuou a andar na direção do som, até que viu uma pequena sombra negra, redonda, surgir no meio da névoa. “Olá?”, crocitou nervoso. Sua voz morreu, abafada pela Bruma.
“Olá!” A sombra respondeu de forma semelhante.
Ele sentiu o pequeno coração de pássaro acelerar ao limite. Precisava tomar cuidado com o estranho, não tinha como saber quem oferecia perigo dentro da Bruma. “Saia do meu caminho”, ele disse. Apenas depois que a última palavra morreu na névoa John percebeu que tinha novamente a capacidade de se comunicar normalmente. E falar não era um bom sinal, pela experiência do pássaro. Preparou as asas para um rápido arranque, mas desistiu quando o estranho falou.
“Eu sou seu caminho, Corvo. Estou esperando por você por incontáveis anos, resiliente do meu próprio modo, resistindo aos desafios da Bruma, suas tentações, seus perigos. Eu, Corvo, sou Yatagarasu e aqui ofereço meu nome como garantia e demonstração de confiança.” Yatagarasu saiu das sombras e se mostrou para John. Era um corvo gordo e de penas reluzentes, de um escuro denso e hipnotizante, um negro que ameaçava sugar a própria luz ao redor. Yatagarasu tinha três patas e uma voz imponente, diferente do que John esperava em um pássaro.
“O…obrigado, eu acho.” John tinha o nome de Yatagarasu, mas não sabia o que fazer com ele e não o considerava como vantagem ou arma. Ele tem três patas! Deus…
“Você tem um papel importante, Corvo. Você deve cumpri-lo ou meu esforço nas últimas Eras terá sido por nada. Esse momento… o tecido universal em que todas as coisas acontecem, alguns gostam de chamar de Tempo - mas essa é um termo errôneo - tem alguns pontos de definição, onde qualquer ato pode se desencadear por anos, décadas futuras, em um rede de ação e reação. Estamos em um desses pontos turbulentos, Corvo. O maior que já presenciei. Você deve saber três coisas. Três informações que me fizeram esperar por sua chegada. Primeiro, você pode guiar as almas da pessoas. Um corvo é um guia e somente ele pode indicar o caminho certo; os corvos representam o sol, o fogo de cada manhã e, por último, corvos são criaturas solitárias. Você vai deixar o grupo, eventualmente. É a nossa sina. Nosso destino, se assim quiser. Tenha isso em mente, Corvo. E não falhe. O tecido de todas as coisas precisa que suas ações sejam corretas, Corvo. Agora vá. Vá e não se esqueça do que aqui escutou.”
Yatagarasu crocitou mais uma vez e levantou vôo rapidamente, sumindo de vista antes que John pudesse pensar em perguntar alguma coisa. O pássaro estava confuso e tentava fixar as três lições de Yatagarasu. Lições? Ele não explicou nada, apenas disse algumas coisas sem sentido e desapareceu. Algo sobre o sol, sobre almas e sobre eu fugir. Era isso?
John também levantou vôo e continuou a seguir a ponte, na espera de encontrar algum dos companheiros.

Paul pescou mais um doce do bolso da camisa e se virou para oferecer para os outros garotos, quando percebeu que estava sozinho no meio da névoa. Por um segundo, ficou paralisado, o canudo de alcaçuz na mão esticada para a Bruma. Não conseguia ver nada além de alguns palmos à frente do nariz e percebeu que não sabia para qual direção estava andando. Se continuasse naquele sentido iria encontrar o parapeito da ponte? Ou estava voltando? Lutou contra o medo que ameaçava subir por sua espinha, uma sensação que iria inutilizar suas pernas e neutralizar qualquer ação que pudesse realizar para sair da Bruma.
Uma sombra surgiu do meio da vastidão cinza e começou a caminhar em sua direção. Paul procurou algum lugar para se esconder e, não encontrado abrigo, voltou-se ao encontro do visitante. “Olá?”, disse com a voz trêmula. Conforme a sombra ganhava contornos, ele se sentiu estúpido, mesmo acima da surpresa. Parado diante uma televisão antiga, que descansava sobre uma armação de ferros com quatro rodinhas, Paul procurou mais além, na esperança de encontrar a pessoa que estivera empurrando aquela televisão pela ponte e através da Bruma. Ele estava sozinho, decidiu depois de alguns minutos.
Estudou o que tinha encontrado naquele lugar inusitado. Era uma televisão bem antiga, a caixa principal de madeira e o vidro côncavo; botões giratórios marcavam uma das laterais e duas horríveis antenas se erguiam do topo. Paul, notando um estranho sentimento percorrer o braço, girou um botão, ligando o aparelho. Uma imagem cresceu na tela e ele deu um salto para trás, o coração ameaçando escalar sua garganta e fugir pela boca. Olhou para além da armação de ferro e não encontrou qualquer cabo de energia. Era uma televisão sobre uma prateleira, nada mais. Sem cabos de energia ou alguém para a mover. Apenas isso: uma televisão nômade no meio da pior névoa que já existiu em todo o Universos. Por Deus, em todos os Universos.
Da televisão, pôde ouvir o tema de Arquivo X. “Quatro garotos, perdidos em uma busca sem sentido e sem esperanças. Estão todos condenados?”, o narrador perguntou para ele, “ou Paul conseguirá cumprir seu destino e voltar para casa à tempo de assistir os documentários com sua irmãzinha?” A televisão mostrava um homem na meia idade, calvo e de terno, em preto e branco. Ele falava próximo a um desfiladeiro e milhares de estrelas brilhavam no céu noturno. Sentiu as lágrimas queimarem em seus olhos. Queria estar no conforto da sala, sentado no sofá macio, com um livro aberto no colo e segurando uma grande caneca de chocolate quente, esperando algo interessante começar na televisão. Daria tudo para conseguir mais uma tarde com sua irmã. “Paul, o que você precisa saber,” o narrador olhava diretamente para ele, “diz sobre o Fogo. Você é o vaso, Paul, a chama que brilha na escuridão.” Uma segunda voz explodiu nas caixas de som e o garoto deu um pulo. Era a voz de seu pai, gritando alto o suficiente para estourar as cordas vocais: “…inútil! Seu moleque sem utilidade, seu merdinha pretensioso. Você e mole, fraco. Bundão, bosta. Sua irmã tem mais colhões que você, seu me…”, a voz estava rouca, mas ele berrava em pleno fôlego. Dois seguranças o agarraram e levaram-no para longe, fazendo com que a voz sumisse aos poucos.
Não havia escolha para ele. Dois riscos brancos eram deixados pelas lágrimas que percorriam o rosto sujo.
“Ele parece não acreditar em seu valor, menino.” O narrador falava suave. No fundo da cena em preto e branco, podia ver um farol erguendo contra a névoa que o cercava, espessa e maligna, uma cena que serviria facilmente para Stephen King. “Mas você deve fazê-lo, o Velho acredita em você, certo? Prove seu pai errado neste assunto, menino, e você será um homem crescido,” havia barganha na voz da televisão, “nós já praticamente perdemos o contador de histórias e os Pesadelos estão vagando soltos uma vez mais. Vá, Paul, ande com segurança ao lado do Corvo e proteja seu nome à todo custo. Receba o Fogo e encontre o Guardião, ele também se perdeu. Todos nossos esforços parecem se despedaçar ao nosso redor, criança. As leis são esquecidas e a memória de tempos idos tornam-se fracas, para a desgraça de muitos seres que um dia já foram grandiosos. Éramos venerados, hoje, jazemos esquecidos nas notas de livros empoeirados. Precisamos de vocês. Precisamos do Fogo.”
O vidro tornou-se negro e a televisão começou a retornar para dentro da Bruma. “Mais uma coisa, Paul. Você pode curar seus amigos. O garoto-sonho, ele precisará de sua ajuda quando enfrentar o monstro que está preso dentro dele.” O contorno desapareceu no manto cinza e Paul ficou novamente sozinho no meio da Bruma. Havia algo na televisão que preenchia o lugar com uma presença protetora e Paul havia abaixado a guarda pela primeira em muito tempo. O que ele disse sobre Jimmy? Ele tinha um monstro? Paul começou a caminhar para o que achava ser a direção certa, tentando interpretar o que a televisão dissera. Esperava saber o que fazer com o fogo quando chegassem nele. Bom, não adianta sonhar com o amanhã se nada fizer hoje, ele pensou de forma resoluta, primeiro precisamos encontrar o Farol e passar pela Bruma. Parte de sua mente ainda estava em Jimmy, no entanto, considerando se o garoto era um risco para todos. O monstro estaria nele ou em seu coração?
Desanimado, andou pela ponte, pensando se sua irmã estaria tomando chocolate quente.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Perdendiculares

Em 2003, perdi um amor ou ele me perdia. Faço esta afirmação pelo fato dela ser um ponto de partida. Anos depois, recordei este fato em um texto de qualidade literária duvidosa com certo sentimento genuíno.

Nele expunha duas situações em uma mesma linha de raciocínio. A história do amor perdido era uma exemplificação para explicar uma tese.

Não me recordo em que momento decidi desistir daquele amor. Talvez tenha pensado em prós e contras, feito uma lista careta e, matematicamente, escolhido romper os laços. O elemento mais provável, porém, foi que medi meu sofrimento em relação ao amor e o resultado não foi positivo. Preferi sair ferido com honra em uma batalha perdida do que lutar por algo que eu não conseguiria vencer. A história da vida de Sun Tzu.

A narrativa em questão, do texto sem qualidades, iniciava-se com uma afirmação. A derrota dita com coragem: eu abdico. Mais do que lavar as mãos, eu assumia o retorno dos soltados a terra natal. Nada havia a fazer exceto deixar as mãos abertas, como chagas, para que o sangue – ou o que estive dentro de mim, na época – escorresse.

O paralelo era estabelecido entre a história de amor quebrada com outra história que tinham como relação a desistência. Na época, a idéia parecia interessante, hoje falta-me a lembrança do que me motivou a escrever de fato. Porém, sempre ao me recordar de um fracasso, lembro-me do texto e de suas correlações. Uma linha de falhas e desistências que se formam, como um quadro, para de vez em quando, admirar e se incomodar, como diria Leminski, como se um homem com uma dor fosse melhor do que se é.

Recentemente tenho escrito indiretamente sobre envelhecimento e maturidade. Talvez por estar em transições como estas. O curioso de escrever é poder, após um tempo, olhar para suas narrativas com a sensação de que ganharam vida própria. Ao mesmo tempo que, indiretamente, elas acompanham as mudanças que direcionei minha vida. Os reflexos no papel me lembram de história na vida real.

Com mais idade compreendi que não há erro na derrota. A perda é um equilíbrio da vítória. Com essa afirmação esbarro no senso comum, mas é inevitável, é um bom raciocínio.

Assumir falhas não me fazem diminuto. Me deixam espiritualmente com o prazer de ser humano. Fracassar de milhões de maneiras diferentes. Chorar mesmo que no escuro. Mesmo que no chuveiro sentado no chão soluçando o mais silenciosamente possível para não ferir minha masculinidade que acredita que homens não choram.

Então, mais uma vez me vi diante de minha vida e suas situações. Como se tivesse olhares ansiosos aguardando-me no horizonte. Cheguei a imaginar uma luz sobre minha cabeça, fazendo-me transpirar mais que o normal, mas era somente uma cena. Um desvio involuntário pelo medo de afirmar que novamente eu abdicava. Abdicava das histórias, declinava qualquer acontecimento futuro.

Não há alegria na velocidade se provoca grilhões. Diante disso, eu abdquei. Com a sensação de um traço bem delineado. De um trabalho bem feito, se posso menear minha conduta como um trabalho propriamente. Não digo que tenho as mãos atadas. Elas estão livres. É por isso mesmo que abdiquei. Dando mais um passo, outro seguimento, as histórias de minhas desistências. Livre e sorrindo por dentro. Minha fidelidade ainda mantinha-se em mim.

segunda-feira, 11 de março de 2013

42

- Oi, Joana.

Ela olhou. Sorriu espantada. Meu Deus!, pensou.

- Meu Deus!

Ele sorriu.

- Me recuso a provar minha existência, querida.

Apontou para o balcão. Ela sabia o que fazer. Em pouco tempo a Dinamite borbulhava na mesa do velho.

- Ah! Como ter o cérebro esmagado...

- ... por uma fatia de limão numa grande barra de ouro! - ela completou, rindo.

Trocaram amenidades. O mundo continuava girando, sem qualquer autoestrada em seu lugar. Prestando atenção, daria pra ouvir o murmúrio lamentoso de um robô não-positrônico, lá fora. Mas eles não prestavam atenção. Tocava Dire Straits na jukebox e o silêncio da noite era eterno. Tudo perfeitamente normal.



sexta-feira, 8 de março de 2013

As Brumas do Farol 5 - O Corvo e o Dragão


John sobrevôou a área Paul e Robert aguardavam pela ponte. Era uma idéia estranha pensar que o velho tinha, literalmente, uma ponte na bolsa, aparentemente o único meio que eles tinham de atravessar o rio. John poderia atravessar o caminho, mas o que faria depois? Um pássaro sozinho não poderia sobreviver muito tempo num lugar tão longe do comum, poderia? O cérebro de John, por menor que fosse, ainda guardava muito do garoto do mundo real, do outro lado do Bosque de White City e portanto ele sabia que precisava dos outros para sair vivo dali e voltar para casa algum dia. Mas os outros precisavam dele? Qual ajuda ele realmente poderia oferecer contra os perigos que com certeza ainda os aguardavam naquela versão doentia do caminho de tijolos amarelos em que estavam presos? O Corvo teve medo da resposta e sabia que estava mais longe do que nunca do Kansas.
Formou, com as asas negras abertas na envergadura máxima, um espiral descendente e sentiu-se em exuberante, ostentando para os outros as habilidades recém domadas e pousou com precisão e suavidade. Tentou não demonstrar, dobrando a velocidade do rápido movimento de sua cabeça, a decepção que sentiu quando nenhum deles dirigiu palavra. Ainda estavam na mesma posição e ele imaginou se Robert tinha se movido no tempo que passou no ar. Robert estava sentado com as pernas cruzadas e a coluna ereta, de olhos fechados. Havia um corte no rosto do garoto e a katana estava encostada na grande pedra; Paul chutava os restos da maçã, fruta que fora bicada diversas vezes pelo pássaro, e mastigava um dos doces que tinha no saco pardo. Para John, o garoto gordo tinha uma fábrica de doces no bolso. Jimmy continuava perfeitamente imóvel na pedra, com os pés juntos e os ombros retos, parado ali, como um casulo. Ele estava escuro, um contorno escuro durante o dia. O pequeno coração de Corvo deu um salto agitado quando pousou os olhos no garoto-sombra. Era terrível vê-lo daquela forma, como se tivesse saido de um quarto e apagado a luz. Até mais, pessoal, tenham um bom dia, sayonara.
“…quero dizer… o cara tem uma ponte na maldita bolsa, Robert. Uma ponte, infernos!” Paul mastigava e falava alto. John tentou não pensar no tipo de criatura poderia ser atraída pela voz estridente do amigo. Presumiu que seriam criaturas que tentaria almoçá-los. Pensou mais um pouco e o sentimento se transformou em uma certeza.
Robert franziu a testa e abriu os olhos, quebrando mais uma vez a meditação. “Estou mais preocupado com Jimmy. E se ele perder a aposta? Não deveríamos… entrar nele e tentar ajudar de alguma forma?”
Paul olhou para a pedra e estremeceu. Havia algo de maligno, mas ele não conseguia dizer o que era. “Provavelmente não conseguiríamos entrar agora. Acho… acho que eles não estão aqui.”
As vozes dos dois garotos aos poucos foram perdendo volume e para John, existia apenas um rápido movimento na terra. Uma minhoca ou algum inseto se rastejando. Seu estômago, ainda cheio da ultima refeição, reclamou e imperou por mais comida. Ele saltitou com velocidade, sem perceber que percorria a distância entre ele e Jimmy. Quando preparou o golpe que lhe traria algo para comer, uma mão o agarrou por trás e ele crocitou esganado - CRAAAA!
Robert e Paul olharam para a pedra, assustados - Robert estava com os dois pés no chão e segurava a espada, quando Paul terminou de se virar na direção do barulho - e viram Jimmy, mais uma vez colorido com alguma imagem que o estampava - o que parecia ser uma árvore com asas de borboleta -, segurando o pássaro escuro com as duas mãos. “Ajude-me, John”, ele disse com uma voz austral, um som que revirou o estômago dos outros garotos. Com um único movimento dos braços de Jimmy, John, o Corvo, desapareceu dentro do garoto, da forma que faria se atravessasse uma cortina pesada para ascender em um palco.
Craaaa!
O som morreu perto do rio e um silêncio pesado caiu sobre eles. John também estava dentro do que diabos seria Jimmy.

As terras mudavam, moldando-se como queriam. O que era uma floresta em um segundo, poderia se levantar na forma de um gigante e correr pelas planícies ao redor, no outro, deixando uma escuridão onde antes estava, uma notável ausência. Mais alguns segundos e outra coisa surgia para tomar seu lugar, talvez uma tartaruga gigante, talvez um Universo preso dentro de uma um Cubo Rubik. Aleatório. Aleatório. Tudo naquele lugar era aleatório.
John, o pássaro ouviu em sua mente, John! Pegue a ponte, John. Pegue a ponte e voe para longe, saia daqui. Havia urgência na voz. Havia uma urgência aguda.
Olhou ao redor e viu Jimmy - um garoto ridiculamente comum - sentado ao redor do que parecia vidro quebrado. Muito vidro quebrado. O velho estava dançando ao redor do menino sentado, gritando obscenidades em alguma língua desconhecida, estampando um sorriso infantil no rosto. Jimmy parecia frágil, de certa forma derrotado. O velho tinha ganhado a aposta, o Corvo subitamente entendeu. Jimmy logo daria seu verdadeiro nome e estaria à mercê das vontades daquele velho misterioso.
E não teriam como atravessar o rio, piorando a situação. De mal a pior, de mal a pior. Corvos eram mal agouro, ele pensou. Ao menos era o que aprendera em algum lugar, não tinha certeza se fora na escola ou na televisão. Mais provável que tenha sido em algum conto do Poe, pensou. Bem, era um maldito ótimo mal agouro, certo? O campeão das espinhas arrepiadas e das sensações ruins.
Eu vou pegar! Conseguiu gritar. Ei! Estou falando! Estou falando!
Sim, aqui você pode fazer praticamente qualquer coisa. Jimmy, ele percebeu, também falava normalmente. Tinha de abrir a boca e formar as vogais com os lábios e a língua. Terrivelmente normal. Uma pena.
Tudo que eu quiser, hein?, o Corvo pensou. Gostava de ser um corvo e melhor do que um corvo, em sua opinião cheia de penas, poderia ser apenas um corvo maior. Ele esticou as asas e começou a crescer, surpreso de como era fácil aumentar de tamanho. Tudo o que tinha de fazer, afinal, era imaginar.
O corvo atroz alçou vôo, rápido como um relâmpago e se aproximou do velho que ainda dançava, alheio aos gritos de Jimmy e ao vôo furtivo do pássaro. Esticou as duas patas e traçou um rasante no ar colorido das Terras Distantes. As garras se fecharam no que ele segurava com a mão enrugada. Assustado, o velho soltou um protesto seguido por um palavrão e começou a correr atrás do corvo gigantesco. John mal sentia o peso da ponte.
Vá! Fuja o quando antes! Jimmy gritou, sem ter a menor idéia para onde o Corvo poderia voar para escapar das Terrar Distantes. Recuperem o Fogo do Farol, ou o que quer que tenhamos de fazer lá!
Fugir os meus ovos de corvo, ele pensou antes de esticar a outra pata e agarrar o garoto que estava sentado no meio do vidro. Fechou com cuidado as garras gigantescas ao redor do garoto e bateu as asas com força, mandando duas torrentes de ar sobre a grama, que reagiu ficando colorida.
Tome cuidado, disse Jimmy, muito movimento por aqui e estaremos perdidos para sempre.
Seus pirralhos! Malditos garotos ladrões! Pássaro dos infernos! Queimem, queimem com a minha verdadeira forma! O velho esbravejou com um dos punhos ao ar. Quando ele mencionou sua forma real, Corvo e menino viraram os pescoços, temerosos do que veriam.
O velho esticou, em um movimento bizarro, e esticou e esticou. Seu rosto ficou alongado e Jimmy pensou no cachorro que tinha há alguns anos. Certa vez, o pequeno animal tentou atravessar uma cerca de metal e enfiou a cabeça entre duas grades, forçando o copo a passar em um espaço fisicamente pequeno demais para seu corpo. Por um segundo, parecia que os olhos do cão escapariam das órbitas e rolariam pelo chão, duas bolas de gude gelatinoso. O velho fazia o mesmo. Seu rosto tentava romper uma placenta que apenas ele via. A pele cheia de rugas se transformou em escamas grossas e duras, cada uma delas verdadeiros escudos, os olhos cresceram e se alocaram na lateral do rosto alongado; braços e pernas encolheram até quatro patas repletas com garras que mais pareciam facas afiadas. Os bigodes do velho, dois fios simétricos, balançavam ao vento enquanto ele os perseguia, traçando um vôo limpo e reto, encarando o mundo com dois olhos precisos e faiscantes.
Um dragão! John exclamou. Um dragão chinês!
Um dragão voando na nossa direção, é o que importa. Consegue ir mais rápido, John?
O que eu quiser, certo?
Aquilo que imaginar, sim, Jimmy confirmou. Voavam em grande velocidade, passando por nuvens venenosas, labirintos feitos com espinhos de rosas, deserto, mares, florestas, guerras entre anões e minotauros… O Corvo e o Dragão voaram pelos mais diversos sonhos.
Puxe as cordas, Jimmy, puxe as cordas. O Dragão chegava perto deles, rosnando com o fundo da garganta e mostrando os mais de mil dentes pontiagudos.
Jimmy olhou para cima, desviando o olhar preocupado da criatura mitológica apenas por um segundo e viu duas caixas de madeira presas nas asas de seu atual transporte. Acme? Sério, John?
Eu não conseguiu pensar em nada melhor. Sabe como podemos sair daqui? O Dragão é bonito e tudo mais, mas eu gosto de continuar… você sabe, vivo. Ser devorado por um dragão não podia ser agradável, se tivesse de adivinhar.
O garoto puxou a corda que balançava como um pêndulo e as caixas de madeira, revelando dois foguetes que mais pareciam mísseis. Risque um fósforo e vamos despistar essa cobra de bigodes!
Jimmy obedeceu ao Corvo e imaginou um fósforo gigantesco. Na madeira, um botão vermelho chamava a atenção de seu usuário. Ele apertou o botão redondo e uma labareda de chamas surgiu da cabeça do palito de fósforo, queimando algumas penas de John, que soltou alguns palavrões em repreensão. Desculpe, John! Eu tenho uma idéia. Você consegue bater a ponte em alguma coisa, qualquer coisa? Precisamos criar um impacto tremendo, mas você vai ter de segurar a ponte, ou ela ficará perdida também. Se der certo, vamos sair daqui. E se não der… deixou o pensamento morrer em sua cabeça.
Perdida? Bem, tentaria fazer o seu melhor. Jimmy aproximou a chama de um pavio entrelaçado e uma chama percorreu de forma cômica o caminho até os foguetes. Uma sonora explosão jogou os dois amigos para frente, ao mesmo tempo que lançou o Dragão para o chão, descontrolado pela choque com a onda de energia e cego pelo súbito clarão. John e Jimmy giraram algumas vezes no ar e quase caíram, mas o pássaro negro conseguiu controlar o vôo em velocidade sônica no último segundo. A ponte deveria ser batida em algo. Ele viu um castelo ao longe, digno de um rei que controlava o mundo todo e ajustou o percurso para se chocar contra as grossas pedras de suas torres. Esticou a pata, tomando cuidado para proteger o amigo, e chocou a ponte roubada contra a torre mais alta do castelo.
O mundo se desintegrou e mesclou, piscando e entrando em foco, apenas para ser desfocado no instante seguinte. A voz do Dragão chegou, de alguma forma, nos dois no momento antes de quebrarem a barreira da Terras Distantes. Eu vou sair daqui, rapaz, e quando te encontrar novamente, vou dilacerar sua carne e mastigar seu coração, sem nunca te deixar morrer. Eu conheço magias, menino. Vou me certificar de que nunca morrerá! Ladrão! Ladrão! Ladrã-

O pássaro rolou de dentro de Jimmy e bateu no rosto do samurai. Os dois irmão rolaram pela pedra e caíram na terra fofa, sem qualquer dano.
“Estava preocupado, irmão.” A voz de Robert estava seca, mas seus olhos estavam cheios de consternação e ternura. Uma mistura perfeita. “Onde está o velho? Vocês ganharam?”
O corvo tentou se comunicar, mas soltou apenas uma sílaba sem sentido. Não valia a pena. Seria um esforço demasiado grande para explicar o que ocorrera, berrando uma sílaba por vez. O Bosque todo estaria sobre eles quando terminasse. Jimmy, por sua vez, levantou a mão e apontou o contorno de um dedo na direção do rio e todos olharam para onde apontava. Uma ponte, larga e de metal, com torres vermelhas que ser erguiam para além das nuvens, dando lugar para cabos de aço, cortava o rio.
Eles gargalharam finalmente e correram para a ponte, querendo finalmente atravessar aquele rio. Os risos, no entanto, morreram nas gargantas quando eles viram a Bruma avançando sobre o chão de metal.
De um lado, os garotos escolhidos para uma missão importante. Do outro, a Bruma, um ser vivo, que dava casa para os piores pesadelos que existiam.
E ambos queriam atravessar a ponte.

quarta-feira, 6 de março de 2013

O Velho

Quando o cachorro vira lata do velho Johnson foi encontrado enforcado em uma das árvores da pequena cidade, ele retirou da parede o velho trabuco de seu avô e foi a casa mais próxima, a procura de pólvora para armá-lo.

Fundador da cidade de Maria das Graças, o velho nunca teve nenhum inimigo. Há muito tempo tinha se afastado da parte americana da família que fincou-se no país como escravocratas ricos na época da colonização. A única herança que mantinha de sua origem, além da arma, era um sotaque puxado que os quase setenta anos de brasilidade não retiraram de sua língua.

Dizem que Johnson saiu de casa com as mesmas roupas surradas que usava cotidianamente. Com a arma empunhada na mão direita, dizia aos moradores que pegaria o culpado, soltando palavras agressivas a, mais ou menos, sete ou seis palavras.

Conhecido por ser um homem fechado, o ancião chorou ajoelhado ao ver a figura canina com a corda de varal no pescoço, repleta de nós que não conhecia e levemente movimentando-se com o vento.

Enquanto curiosos passavam no local, um dos moradores acionou a polícia local que, além de dar um leve assobio ao ver o cão e fazer anotações, não pode fazer muito até dias depois quando Johnson, sujo e com marcas de sangue na roupa, se entregou a polícia após matar o jovem que matara seu animal.

Com o falecimento da esposa, o velho tornou-se recluso da própria cidade que fundou. O que aumentava o status de figura lendária em Maria das Graças. Contam que o cão foi encontrado dias depois do falecimento da esposa. De luto, de um naco de lanche ao animal e se apegou.

Durante aproximadamente seis anos aquele cachorro foi o companheiro de Johnson. Ele tinha certeza de que seria enterrado pelo animal, de alguma maneira. Mas estava amarrado à arvore enquanto, em prantos, o velho lembrava que a ração deixada no pequeno prato de metal pela manhã estava intocada.

Johnson não hesitou em se entregar a polícia. Detalhou ao delegado os pormenores de sua ação que se consistiu em, ao falhar da pólvora no trabuco, virar o instrumento ao contrário e, com a força quase septuagenária de alguém que perde sua única ligação sensível com outro ser, arremeter algumas vezes, que não soube precisar, na cabeça de Jonas Bezerra, um dos poucos jovens do local que, por ter ido a capital três vezes, sentia-se um cosmopolita.

Jonas nunca foi ouvido pelo delegado. Dissera ao velho, minutos antes de morrer, que tentou expor sua valentia aos amigos. A supremacia descomunal perante outro animal, o cão, dócil e indefeso. Conforme realizava a ação, o grupo de quatro amigos sentiu-se acuado, principalmente quando, ainda com as cordas nas mãos, ele ameaçou o menor do bando, enlaçando o fio em seu pescoço.

A morte do cachorro seguida pela de Jonas foi o primeiro e segundo escândalo que a cidade assistiu. Foi a passagem do deslumbramento da inocência para a consciência de que todo ser humano está predisposto a fazer o mal, bem como, por amor aos seus entes, capazes de romper as leis mais cristãs. O cachorro, Jonas e o velho eram início, meio e fim de um mesmo ciclo. Se tornaram, com o passar do tempo, não só uma espécie de história lendária, e o princípio violento da cidade, como uma fábula moral que ia além da idéia agressão que gera agressão.

Embora tentassem os conservadores, o fundador da cidade nunca conseguiu ser odiado. Mas também não fora perdoado. Em sua homenagem, Maria das Graças ganhou no século seguinte o seu nome. Registrado por um prefeito que, envergonhado de não falar inglês e não saber soletrar o nome Johnson, batizou a cidade como Americano, colocando a foto do velho, uma das únicas encontradas em sua casa, em uma ampliação mal feita na sede da prefeitura.

sexta-feira, 1 de março de 2013

As Brumas do Farol 4 - Terras Distantes


Uma borboleta cruzou a plantação de trigo, voando contra as correntes de ar que a levaram para longe de seu caminho. Ela pousou, finalmente, à sombra de uma árvore e descansou as asas doloridas, quando pegou fogo e desapareceu, deixando para trás apenas a fumaça que subiu até as folhas da árvore; a mínima quantidade de cinzas que ela produziu, misturou-se nas raízes e ela se tornou para sempre parte daquela árvore. Era um final digno para uma borboleta: uma vida frágil e incerta que se vê, de repente, parte de uma existência perseverante e resistente. Não fosse, claro, o caso do pequeno inseto ter sofrido combustão instantânea apenas parte de uma mentira. Também é interessante notar que a borboleta, o fogo, a fumaça e as cinzas são parte de um grande sonho e que por isso não têm qualquer matéria. A borboleta não existia antes da plantação de trigo que cruzava - que por sua vez passou a existir entre uma pulsação e outra - e cessou de existir logo depois. Foi uma vida breve, é bem verdade, mas uma vida que teve algum significado.
A borboleta, Jimmy assistiu de longe, simplesmente se consumiu em uma minúscula pira e passou a fazer parte da árvore. O garoto não sabia como sabia disso, mas tinha certeza de que a borboleta era a árvore, como se o vegetal não estivesse naquele exato lugar antes. Ou depois, se é que isso tem alguma importância. Eles, o garoto, o velho e a árvore que era uma borboleta - ou borboleta que era uma árvore, ele se perguntou - estavam em um lugar estranho. Quatro luas estavam espalhadas no céu, mas nenhuma estrela se exibia para olhares divagantes; uma raposa estava sentada em uma mesa de pedra, servindo chá em três xícaras, uma para sua própria garganta, outra para a boneca de porcelana com olhos heterocromáticos e a última para Margaret Thatcher, que usava uma camiseta rasgado com o símbolo do Metallica. A mesa em que estavam sentadas ficava no centro da Stonehenge e belas mulheres celtas dançavam nuas para as luas que antecediam o solstício de verão.
Na sombra da árvore, uma sombra que se estendia como duas enormes asas, o velho estava sentado na posição na qual Jimmy o encontrou primeiramente, fazendo malabarismo com três ovos de fênix. “Ora, ora. Eu podia jurar que você era mais alto.”
O garoto olhou para suas próprias mãos e viu pele, simples e desinteressante pele humana e não o vazio que mudava constantemente de imagens; longe das linhas que limitavam seu corpo, como as bordas de uma televisão. Naquele lugar estranho, Jimmy voltara a ser normal. “Onde estamos?”, ele tentou não se incomodar com a textura das mãos.
“Nas Terras Distantes, garoto. Você não conhece este lugar? Acreditava que você conheceria melhor a própria natureza.”
Jimmy olhou para as luas e para os reflexos em alguns lagos no horizonte; Notou que Margaret Thatcher bebia chá com açúcar de beterraba e que a Raposa tentaria devorá-la mais tarde, enquanto a boneca de olhos com cores diferentes corria desesperada para salva suas pernas de mentira. “Não, na verdade. Sim. Eu conheço e desconheço onde estamos, velho. Possuo memórias destas… Terras Distantes… mas sei que é a primeira vez que piso em suas gramas. Como chegamos até aqui?”, ele perguntou depois de se sentar ao lado do homem.
“Ninguém chega às Terras Distantes, meu jovem, você apenas está. E isso é tudo. É impossível saber de onde você veio ou qual seu destino, partindo daqui. Mapas não têm utilidade aqui, note bem. Uma mapa não tem propósito se ele tenta representar um lugar em contínua mutação, não é?”
Ele concordou com a cabeça e passou as mãos sobre os joelhos, tentando se acostumar às terminações nervosas uma vez mais. “Estou sonhando?”
O velho deixou cair os ovos na grama e furou um, o maior deles, e sugou seu conteúdo. Jimmy assistiu, estupefato, a fumaça saindo das narinas do velho. “Ovos de fênix sempre estão quentes, são ótimos. Você não esta sonhando, pequeno, não quando estamos no lugar onde todos os sonhos se encontram.” O garoto abriu a boca para fazer outra pergunta, mas o velho o cortou: “Chega de papear. Vocês crianças e as infinitas perguntas! Não é seguro ficar muito tempo nas Terras Distantes, ou podemos nunca mais achar o caminho para casa. Eu quero seu nome, agora mais do que nunca, e acho que foi um ato nobre se arriscar para salvar seus colegas; sua busca precisa de minha ponte. Eu quero algo seu, você quer algo meu. Vamos terminar logo com isso e podemos voltar para o Bosque, tenho algumas tarefas importantes para você quando voltarmos com seu nome em um papel dentro da minha bolsa. Qual será a nossa decisão?”
Jimmy pensou pela primeira vez sobre qual seria o jogo que disputariam. Ele queria sair daquele lugar, principalmente agora que sabia que poderia ficar perdido em um lugar impossível de ser colocado em um mapa, e sairia de lá apenas com a ponte nas mãos e não antes disso. Não tinha certeza para quê, afinal, precisavam do Fogo, mas sabia que era de extrema importância chegar ao Farol e sair do Bosque o quanto antes. De alguma forma, apenas eles poderiam levar para aquele mundo em White City o Fogo que estava no topo do Farol. Como e porquê, fugiam de suas preocupações. “Meu jogo predileto…”, pensou nas aulas de educação física e a resposta veio natural, “é queimada.”
“Queimada?”, o velho coçou o longo bigode.
Jimmy explicou as regras do jogo infantil e o velho concordou em iniciar a aposta. O menino se levantou e caminhou alguns metros quando seu oponente pediu para que ele parasse. “Não vá mais longe. Devemos ficar parados e jogar essa Queimada sentados, sem nos mover. Movimentos bruscos podem te levar para outra parte das Terras Distantes, caro. Se eu estiver longe e as terras mudarem de lugar… bom, seria um jogo sem conclusão, em outras palavras. Qual o seu nome, rapaz?”, arriscou o velho, com um tom de voz suave e natural.
“Qual o seu nome, velho?”
“Bem jogado. Você pode criar qualquer coisa que quiser, desde que ela exista em sonhos quando você a imaginar. O primeiro a ser encostado com qualquer coisa, perde. Pronto?”
“Sentados então?”, ele cruzou as penas na grama. O orvalho estava gelado e o vento sussurrava em seus ouvidos palavras em uma língua desconhecida. Ele imaginou uma besta e a arma medieval apareceu do seu lado, feita de uma madeira escura e detalhada com crânios e chifres. Jimmy carregou a arma com sua mente e disparou contra o velho. O primeiro movimento era dele.
Uma muralha surgiu entre eles e a flecha quebrou em uma pedra, sem causar qualquer dano na imaginação do velho. “Não é um jogo disputado com bolas de borracha?”
“Quem sonharia com uma bola de borracha?”, ele perguntou, já colocando outra flecha na besta. “A imaginação é o limite, velho. Pretendo usá-la.”
O velho sorriu. “Que vença o mais criativo”, disse antes de atacar o garoto com uma muralha de fogo. As chamas surgiram do nada, incendiando as pedras usadas para se proteger do virote laçado por Jimmy, em grandes labaredas que venciam terreno rapidamente, devorando tudo em seu caminho; Jimmy perderia em poucos segundos.
De repente, uma fileira com quinze elefantes surgiu entre ele e as chamas, cada um dos paquidermes com uma piscina à frente. Em perfeita harmonia, os animais encheram as trombas com água fresca e lutaram contra o fogo. Alguns dos elefantes tiveram graves queimaduras, mas assim que o fogo estava extinto, eles desapareceram, dando fim ao odor desagradável de carne queimada. Sem dar tempo para o velho respirar, Jimmy encontrou um exército de minúsculas formigas que se moviam com incrível velocidade. São milhares de formigas. Uma, ao menos uma, tem de encostar no velho! Assim estarei livre para voltar para eles com a ponte em mãos. Por um segundo, pensou como seria estranho carregar uma ponte nas mãos, mas cortou o devaneio e se concentrou no jogo.
O velho, por sua vez, cercou seu perímetro com mel e teias de aranha, segurando os indesejados invasores. Incontáveis formigas lutavam para se soltar das teias de aranha e as que conseguiam, encontravam-se nadando no mel pegajoso. Ele sorriu: estava apenas se aquecendo. Criou, com um esforço menor do que o de fechar os olhos e bocejar profundamente, um rio que corria, largo e forte, como o que bloqueava o caminho dos garotos. As águas lodosas subiram em um piscar de olhos e uma verdadeira enchente tomou conta das Terras Distantes, afogando uma legião de sonhos e pesadelos. Margaret Thatcher xingou enquanto se afogava e a Raposa aproveitou para mergulhar e abocanhar uma das pernas da mulher; a árvore atrás do velho bateu asas feitas com folhas e galhos e levantou vôo para outro sonho. Jimmy viu, com horror, a água subindo e tentou pensar com astúcia, pois apenas uma gota do rio em sua pele significaria derrota e teria de dizer o nome para o velho; não podia se levantar e correr, não queria se perder para sempre entre sonhos. Criar uma colina também não estava dentro das opções: movimentar as Terras Distantes era arriscar modificar toda aquela geografia. Foi quando se lembrou do aquário que tinha quando era menor, com pedras verdes e dois peixes dourados. Os peixes não duraram por mais de três meses, é isso que eles faziam, na opinião do garoto: esperam até você criar laços afetivos apenas para morrer no dia seguinte, numa espécie de piada de mal gosto. Sorriu com o canto da boca e conseguiu ganhar um pouco mais de tempo. De um segundo para o outro, Jimmy estava dentro de um aquário perfeitamente selado. Nenhuma gota de água chegaria até ele. Pôde ver, através do vidro, as formigas subindo com a água, algumas ainda presas no mel ou nas teias de aranha. Estava claro qual seria seu próximo movimento.
Calmo, esperando até que estivesse quase completamente submerso, o velho respirou profundamente e encheu os pulmões de ar. Depois, lembrou onde estava e simplesmente criou guelras. Poderia ter criado algum mecanismo artificial de acumulação e disposição de ar, mas o funcionamento das guelras era algo comum para ele e entender o que se estava criando era algo importante quando se tratava de sonhos. Sonhos eram criaturas temperamentais e com um senso de humor estranho. Uma pessoa perdia o controle dos próprios sonhos com facilidade e eles passavam a assombrar seu leito ou a queimar as horas do dia, como um oásis impossível de ser alcançado, uma promessa distante que chama como o canto de uma sereia. Quando inalou a água escura, abriu os olhos. Estava debaixo da água e o garoto permanecia no mesmo lugar, seguro por uma redoma de vidro. Uma sombra crescia entre eles e o velho lembraria mais tarde, ainda molhado pela água sonhada, de pensar se nuvens podiam rolar por baixa da água. Quando ele percebeu as centenas de piranhas que nadavam em sua direção, agiu rápido e tomou emprestado exatos oito mil tubarões, que infestaram as águas do rio, devastando acidentalmente uma pequena cultura de bactérias aquáticas que haviam alcançado o tipo inteligente de vida.
Curiosamente, as bactérias haviam formado uma sociedade firmemente calcada em um ser iluminado que viviam num aquário de vidro acima delas, impossível de alcançar ou ser visto. Elas não tinham como provar sua existência e um longo debate entre filósofos tomou lugar nas maiores universidades daquela cultura, disputas entre líderes dos Amigos do Aquário e cientistas unicelulares aconteceram nos diferentes setores da sociedade organizada pelas bactérias. Quando um dos tubarões se chocou contra a grama molhada tentando abocanhar uma piranha, as bactérias deixaram de existir, passando a viajar pelo mundo que conheciam nas costas de um tubarão divino. Mais tarde, enquanto veneravam o Grande Tubarão em que viviam, elas achariam graça de toda a idéia de um ser dentro do aquário celestial que zelava por elas.
Enquanto isso, tudo que Jimmy pensava era que tubarões são animais marinhos e que não podiam viver em água doce. “O rio tem água salgada”, o velho explicou e o rio passou a ter água salgada. Engraçado como são as leis deste lugar, o jovem pensou e fez a água ferver. Bolhas subiram enquanto a água atingia temperaturas inacreditáveis, matando alguns tubarões e piranhas, fazendo sumir alguns outros. Vapor subia para os céus e formavam negras nuvens sobre eles. Esta na hora de acabar com essa brincadeira, já passamos tempo demais aqui e mudamos muita coisa. Jimmy podia sentir a impaciência do lugar, uma vontade de se transformar e separar os dois humanos que faziam caos nas Terras Distantes. O garoto imaginou um campo de dentes-de-leão que os cercava por quilômetros e quilômetros. As plantas se abriram e soltaram suas sementes. Um mar branco tomou conta da visão do garoto. Mas era preciso mais para vencer aquela disputa, era necessário ter um plano de apoio se quisesse encostar no velho. Ao mesmo tempo, uma forte tempestade começou a despencar das nuvens que pairavam sobre eles. Violentos trovões tremiam as Terras Distantes e Jimmy se esforçava para manter a situação sobre controle, ou logo provocariam mudanças naquele lugar e podia se considerar um morador permanente da terra dos sonhos.
Um simples estalar de dedos e o velho se viu novamente seguro. O vento que soprava para o leste, mudou repentinamente de direção e soprou com força, empurrando as leves sementes de dentes-de-leão e as gotas de água, que por poucos milímetros erraram a pele do velho. Um relâmpago criado pelo inimigo cruzou o horizonte e queimou o vidro do aquário de Jimmy, provocando largas rachaduras. Ataque duplo, o velho pensou, sentindo uma pontada de raiva pela primeira vez em muito tempo, está na hora de acabar com a brincadeira, garoto. Você está jogando sério agora. Hora do ataque final.
Jimmy assistiu, congelado pela natureza ridícula da situação, galinhas chegando perto do vidro. Elas pulavam dentro de canhões e eram disparadas contra ele. Dezenas, centenas de galinhas com pequenos capacetes vermelhos, algumas com estrelas amarelas pintadas na lateral. Jimmy imaginou um time de baseball e uma dezena de jogadores começaram a rebater as galinhas com tacos de madeira, explodindo-as em uma massa de sangue e penas. Uma delas, no entanto passou pelo defensor e se espatifou no vidro fragilizado, fazendo com que o aquário se desmontasse em um universo de cacos. Jimmy, não mais protegido pelo vidro, se sentiu pelado.
Vinte galinhas foram lançadas de uma só vez e Jimmy multiplicou os rebatedores até igualar o número de aves no ar. O velho sorriu com malícia e viu seu plano funcionar. Poucos centímetros antes de entrarem na área de alcance dos jogadores de Jimmy, as galinhas apertaram um botão vermelho escondido em seus capacetes e se despediram da breve vida que tiveram, explodindo em pleno ar, tomando a área com uma confusão de ossos, sangue, carne e penas que percorriam um percurso imprevisível.
O garoto conjurou os ventos fortes usados pelo velho.
Ziguezagueando, no que pareceu uma eternidade, uma das penas ignorou as fortes rajadas de vento e pousou com delicadeza no cabelo de Jimmy. Uma corneta soou, anunciando o final do jogo e os rebatedores se retiraram de cabeça baixa, derrotados.
O velho se levantou em um único salto e apareceu na frente do garoto, quase encostando seu nariz no dele. Ele sorria com todos os dentes. “O seu nome, rapaz. Quero seu nome, meu prêmio. Quero seu nome, escravo!” Ele segurava a ponte em uma das mãos enquanto dançava de alegria, chutando pedaços de galinhas nos jogadores de baseball.
Escravo? Eu… eu perdi? Não posso entregar meu nome para… eu não quero ter de servir… lágrimas escorriam, quentes e humilhantes, pelo rosto do garoto. Jimmy esticou os braços em desespero e procurou pela única ajuda que conseguiu imaginar. Suas mãos quebraram a barreira dos sonhos e ele agarrou sua última esperança, puxando para as Terras Distantes um amontoado de penas negras.